Philip Nitschke, da Exit International: “Você faz escolhas durante toda a vida. Por que não pode escolher como vai morrer?”

Em 2015, Philip Nitschke queimou sua licença médica em resposta ao que considerou condições que violavam seu direito à liberdade de expressão, impostas a ele pelo Conselho Médico da Austrália.

Philip Nitschke, médico australiano, diretor da Exit International, organização que ele fundou em 1997, é um dos nomes mais conhecidos do movimento internacional pelo direito de morrer.

Em 2015, Philip queimou sua licença médica em resposta ao que considerou condições que violavam seu direito à liberdade de expressão, impostas a ele pelo Conselho Médico da Austrália. Em seguida, Philip se mudou para Amsterdã, na Holanda – onde vive num barco.

Em 2017, Philip criou a Sarco, cápsula que pode ser acionada inclusive por pacientes com síndrome do encarceramento (locked-in syndrome), pessoas que conseguem mexer apenas os olhos. Uma vez acionado, o mecanismo libera gás inerte (nitrogênio) dentro da cápsula. Isso reduz rapidamente os níveis de oxigênio (para 5%, em menos de um minuto), o que evita a agonia causada pela sensação de asfixia. Segundo Philip, “o ocupante se sente tonto, em seguida perde a consciência e morre pacificamente”.

Philip deu uma longa entrevista a Scott Douglas Jacobsen, publicada no site Canadian Atheist em janeiro de 2019, e reproduzida em maio de 2022 na plataforma independente de jornalismo In-Sight Publishing. Você lê essa entrevista abaixo.


Se você refletir sobre o início da vida, como foram as discussões sobre a morte que você presenciou entre os adultos?

Como muitos que cresceram nos anos 50 e 60, eu estava cercado por uma cultura de negação da morte. Não queríamos pensar na morte. Isso raramente era discutido. A fé (muitas vezes mal colocada) influenciou a profissão médica. Nós tínhamos a expectativa de eliminar todas as causas conhecidas de sofrimento e doença.

Vi meu primeiro cadáver na adolescência. Noto agora como nossa sociedade é boa em remover essa experiência de nossas vidas: a idade média da pessoa que vê pela primeira vez o corpo de alguém morto aumenta a cada ano.

Foi só quando comecei a trabalhar em outras culturas que percebi que a estratégia ocidental de negação e remoção das evidências da morte, especialmente do alcance das crianças, era questionável e patológica. Nas sociedades aborígenes, onde trabalhei nos meus 20 anos, os moribundos faziam parte da comunidade, eram envolvidos nas atividades, da melhor forma que podiam, e morriam com as crianças brincando ao seu redor. Fiquei impressionado.

Na faculdade de medicina, aos 30 anos, fui mais uma vez mergulhado na negação ocidental da morte. A palavra eutanásia não era mencionada. Toda morte era considerada um fracasso.


Qual é a definição mais adequada para morte assistida ou eutanásia? Quais são as terminologias mais atualizadas?

A eutanásia voluntária, da forma que eu uso esse termo, significa uma morte pacífica, decidida pela pessoa. Ela também abrange a ocasião em que outra pessoa age para acabar com a vida de um indivíduos, a seu pedido.

Os termos “eutanásia” e “suicídio” se tornaram sensíveis. Então surgiram outras palavras para descrever a morte assistida: morte assistida por médico, suicídio assistido, suicídio assistido por médico e assim por diante.

O termo MAD ou MAiD, significando “morte medicamente assistida” tem substituído o termo PAS, ou “suicídio assistido por médico”, que ocorre quando um médico ajuda um paciente a morrer, prescrevendo-lhe um medicamento letal.

A mudança de MAD ou MAiD para PAS ou PAD surgiu como uma tentativa desajeitada de remover a palavra “suicídio” e diferenciar o suicídio racional, para os doentes e idosos, do suicídio irracional, para o adolescente deprimido.

Na Exit, entendemos que, no fundo, isso é um sofisma: suicídio é quando uma pessoa acaba com a própria vida. Ponto.

Se o ato precisar de esclarecimento, use suicídio racional para mostrar que se trata de uma decisão informada e ponderada, amadurecida, de longa data – e não um ato impulsivo.

O suicídio racional também tira o profissional médico de cena.

Morrer não é um evento médico. É sempre frustrante como esses profissionais colonizaram o território da boa morte, assim como fizeram o parto.

Como a professora Susan Stefan disse em seu livro Rational Suicide, Irrational Laws, de 2016, o problema com os médicos é que, uma vez que você os deixe entrar na experiência da morte, nunca mais os tirará de lá. Como ela está certa.

Qual é o propósito e o escopo da Exit International? Por que a Exit é importante para aqueles que pensam no fim da vida – a sua e a de seus entes queridos – em um contexto secular e não-religioso?

A Exit é uma organização que visa garantir que todas as pessoas com mais de 50 anos, no pleno exercício de suas faculdades mentais, possam ter acesso a informações precisas e confiáveis ​​e também aos meios para que possam alcançar uma morte pacífica no momento de sua escolha, caso haja a necessidade.

A restrição de idade de 50 anos é uma espécie de compromisso. Tentamos restringir o acesso a “adolescentes problemáticos” com pouca experiência de vida, mas não excluímos pessoas com menos de 50 anos que nos procurem com motivos válidos para acessar as informações sobre morte assistida.

A Exit é um pouco como uma companhia de seguros. Oferecemos seguro para o futuro. Você espera nunca precisar disso, mas se sente confortado por saber que tem uma escolha, caso essa necessidade surja.

A idade média dos membros da Exit é de 75 anos. Isso não mudou nos últimos 20 anos.

Embora a Exit tenha pessoas de todos os matizes em nossa comunidade, é correto dizer que temos um número esmagador de não-crentes.

Isso não é surpreendente. Se você é um membro da Exit, é provável que queira escolher quando e como morrer.

Significa que você tem pouco interesse em deixar sua morte a cargo de Deus, ou de qualquer outra figura religiosa ou espiritual.

Significa que você é uma pessoa que quer autonomia e controle, tanto sobre sua vida quanto sobre sua morte.

Temos muitas feministas na Exit. Elas lutaram pelo direito de controlar sua reprodução. Agora, muitas voltam suas atenções para este próximo desafio: ganhar o direito de decidir sobre o momento e os meios de sua morte.

À medida que a idade média das populações chega em 80 e 90 anos, muitos de nós estaremos expostos ao risco de morrer mal, sem poder de escolha.

Esse receio motiva muitas pessoas. E fornece o impulso para que elas coloquem em prática um plano para garantir uma boa morte.


O que é o Manual da Pílula da Paz? De onde vem este termo?

The Peaceful Pill Handbook é o nosso guia prático, agora publicado em cinco idiomas, para explicar como uma pessoa idosa ou alguém que está gravemente doente pode obter os medicamentos ou equipamentos necessários para ter uma morte segura e pacífica no momento de sua escolha.

Se uma pessoa tem acesso às melhores informações, baseadas na ciência, ela fica no controle do processo. Sem necessidade de pedir permissão ou de envolver médicos ou outros especialistas.

E você não precisa de um jaleco branco ao lado da cama. Morrer não é necessariamente um evento médico. Repito: morrer é um evento biológico, social e cultural que todos vamos vivenciar. Não requer nenhuma ação médica ou religiosa.

O livro surgiu depois que a Lei dos Direitos de Doença Terminal da Austrália foi derrubada pelo Parlamento Federal Australiano em 1997 (depois que ajudei quatro pacientes a morrer, em 1996, durante os nove meses em que a lei existiu).

A lei foi revista, mas isso não significa que as pessoas deixaram de querer conhecer melhor suas opções de fim de vida. Na verdade, aconteceu o contrário: cresceu a demanda por workshops em que as pessoas pudessem trocar informações sobre a melhor maneira de finalizar a própria vida, caso surgisse a necessidade.

O material desses encontros e as perguntas do público eram basicamente os mesmos, independentemente da cidade ou país. Então organizar um livro pareceu uma maneira lógica de fornecer essas informações a um público mais amplo de interessados.

O termo “Peaceful Pill” é uma alusão a um método que produza a morte de modo acessível, confiável e fácil de usar, como a ingestão de uma bebida ou de uma pílula.

A inspiração para a “Pílula da Paz” veio do juiz holandês Huib Drion, que cunhou o termo “Pílula Drion”, algo que ele argumentou que deveria ser fornecido gratuitamente a qualquer pessoa idosa que a solicitasse.

O juiz Drion compreendeu que todas as pessoas com mais de 70 anos deveriam ter acesso a essa pílula. E ele achou inapropriado que essa opção ficasse restrita a médicos ou farmacêuticos, apenas em virtude da sua formação técnica.

De fato, a ideia de que todos os indivíudos com mais de 70 anos recebessem uma “pílula da paz” – tendo assim controle sobre sua vida (e sobre sua mortemorte), independentemente de estarem doentes ou não, é um tópico de amplo debate hoje na Holanda.

Por isso eu gosto tanto de viver neste país. A abertura e a franqueza do debate sobre algo tão fundamental quanto morrer. Admiro muito o pragmatismo dos holandeses.


Por que o respeito à escolha individual, ou à autonomia de cada um sobre o que fazer com sua própria vida, é tão importante em sociedades livres?

Na sociedade moderna, as decisões que tomamos ao longo de nossas vidas ajudam muito a definir quem somos, tanto em termos individuais quanto no que se refere à comunidade a que pertencemos.

Nós somos definimos pelo que fazemos no trabalho, em nossa vida privada, se temos filhos e assim por diante.

Dez anos atrás, a Exit fez um comercial de TV chamado “Exit Choices”, que teve como tema a prerrogativa do indivíduo de tomar decisões a partir de uma reflexão pessoal: “esta é a pessoa que eu sou”.

Tinha um cara sentado na cama de pijama dizendo “eu escolhi ir para a universidade, eu escolhi dirigir um Ford”. Mas “não escolhi ter câncer e certamente não quero escolher que minha família me veja sofrer”.

Ele encerrou dizendo: “Fiz minhas escolhas durante toda a minha vida, sobre como sou e como vivo. Por que não posso escolher como morrer?”

Parece uma boa pergunta.

Discordo fortemente do contra-argumento que diz que uma pessoa que escolhe uma hora e um lugar para morrer pode, com isso, prejudicar a comunidade que ela deixa para trás.

No filme Mademoiselle and the Doctor, de 2004, de Janine Hosking, eu falei sobre isso.

Tenho notado muitas vezes que pode haver um grande ressentimento por parte dos que ficam para trás quando alguém opta pelo suicídio. É como se muitos de nós se sentissem profundamente e pessoalmente insultados quando alguém parte mais cedo, como se estivesse dizendo aos que sobraram que ele ou ela não tinha tempo para o jogo que o resto de nós está jogando.


Como a eutanásia voluntária difere do suicídio racional?

A eutanásia voluntária significa um ato realizado por outra pessoa, quando alguém lhe ajuda a encerrar sua vida, a seu pedido. O suicídio não precisa de outra pessoa. E o suicídio racional é quando essa é uma decisão ponderada e informada desse indivíduo.

Acredito firmemente nas palavras de Thomas Szaz, que disse que o suicídio é um direito humano fundamental, e que a sociedade não tem o direito moral de interferir.


Quais são as técnicas disponíveis para cada opção do direito à morte hoje?

A eutanásia voluntária é entendida como uma injeção letal administrada por um médico, que hoje pode ser legalmente realizada na Holanda, na Bélgica e em Luxemburgo, desde que os pré-requisitos legais sejam atendidos.

Na Suíça, uma injeção letal pode ser administrada, mas a própria pessoa deve ativar a droga, pois a eutanásia voluntária é ilegal.

O suicídio racional é legal e possível em qualquer lugar se a pessoa tiver acesso às melhores informações. Esta é a principal razão para a publicação do Manual da Pílula da Paz. Não se trata apenas de drogas. Há vários métodos. Os dois critérios mais importantes são que o meio que leva à morte seja pacífico e confiável.


Quais são os métodos preferidos nos casos de eutanásia voluntária e de suicídio racional?

A maioria das pessoas – a esmagadora maioria dos membros da Exit e os leitores do nosso livro – querem uma pílula que possam tomar e que lhes permita morrer em paz durante o sono.

A melhor “pílula da paz” é o Nembutal, um sonífero barbitúrico criado nos anos 50. O composto químico é o pentobarbital que, quando tomado em overdose por via oral ou injeção, causa a morte por depressão respiratória enquanto a pessoa está em sono profundo. Esta foi a droga usada por Marilyn Monroe, Judy Garland e Jimi Hendrix para acabar com suas vidas.

A droga não é mais prescrita como agente anestésico. Ela foi substituída na década de 1960 pela família de medicamentos benzodiazepam, muito mais segura.

Entre os membros da Exit, alguns viram membros da família morrerem mal. Então querem ter um seguro que lhes garanta uma boa morte. Outros temem a ideia de ter que deixar sua casa na velhice e se mudar para uma instituição. Outros simplesmente dizem que quando não puderem mais cuidar de si mesmos, será hora de ir embora.


Como você vê o futuro da Exit International?

Estamos analisando como usar a tecnologia para falar com um número crescente de pessoas interessadas no direito de morrer em todo o mundo. Isso inclui workshops de transmissão ao vivo, uso de holografia, apresentações virtuais e assim por diante.

Estamos analisando como preparar a organização para o futuro de modo a resistir aos ataques implacáveis ​​daqueles que discordam da nossa filosofia e que argumentam que devemos ser fechados à força. Nosso objetivo é continuar divulgando informações precisas e de fácil compreensão sobre como ter uma morte tranquila e confiável no momento de sua escolha, além de pesquisar e desenvolver opções cada vez melhores para que o indivíduo tenha esse controle na sua mão.

Minha geração, os baby boomers, reescreveu muitas regras sobre a vida. Por que não deveríamos reescrever algumas regras sobre a morte? Este tem sido o trabalho da minha vida. Essa trajetória tem sido e continua sendo emocionante e altamente gratificante.

Devo acrescentar que meu projeto atual é a cápsula de eutanásia Sarco.

Estou trabalhando com um designer industrial holandês nisso. A ideia é criar uma cápsula na qual uma pessoa possa morrer em paz. A cápsula é esteticamente bonita. É impressa em 3D, o que significa que, com o tempo, e com o avanço dessa tecnologia, ela será amplamente acessível, pois a pessoa poderá levar seu código de acesso a uma loja de impressão 3D local e construir sua própria cápsula.

Como a Sarco é alimentada por nitrogênio líquido (causando a morte por hipóxia, baixo oxigênio), ela pode oferecer uma vantagem adicional: uma morte eufórica.

A Sarco visa inverter totalmente a forma como vemos a morte: de um evento sombrio e macabro a um acontecimento de celebração e até de alegria.

Soa distante? Estamos testando os limites, com certeza. Fiquei satisfeito no ano passado ao ver a Sarco sendo referida como o Tesla do movimento de morte assistida.

Eu acredito que há um paralelo aí.


Algum pensamento final, para concluirmos?

A Exit realiza workshops em muitos países nos quais os membros podem participar pessoalmente ou on-line. Também operamos fóruns que fornecem um serviço de perguntas e respostas. E apoiamos ativamente um programa de P&D que incentiva o uso de novas tecnologias para fornecer estratégias de fim de vida cada vez melhores e mais acessíveis.

Você pode encontrar mais informações sobre a Exit, e as atividades sem fins lucrativos em que estamos envolvidos, em nosso site.

Ou sobre nossas atividades de publicação, sediadas em Amsterdã.

Muito obrigado por me considerar para esta entrevista.


boamorte.org não é um site de incentivo ou de divulgação do suicídio. E não apoia quem o faz.
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Não tome nenhuma decisão solitária ou precipitada. Converse. Fale. Ouça. Informe-se.
A vida com qualidade é sempre a melhor opção.
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A morte voluntária assistida, tanto na versão autoadministrada quanto na versão administrada por terceiros, constitui um procedimento ilegal hoje no Brasil

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