Luciana Dadalto: “Precisamos discutir autonomia no fim de vida no Brasil sob uma perspectiva de direito individual”

Luciana Dadalto: “A autonomia para morrer é um tabu enorme entre nós. Ninguém quer falar disso no Brasil. Temos um apego muito grande à vida biológica. E damos um peso muito menor à vida biográfica.”

Luciana Dadalto é doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG e mestre em Direito Privado pela PUC Minas.

Como advogada, tem vasta experiência na área de direito médico.

Como pesquisadora, se especializou em temas ligados à autonomia no fim da vida – é também professora universitária e ministra aulas em diversas programas de pós-graduação, inclusive no curso de suicidologia do instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, direcionado a psicólogos.

Luciana administra o portal Testamento Vital, também disponível no Instagram, uma das melhores fontes de informação disponíveis hoje no Brasil sobre temas ligados à autodeterminação e à morte com dignidade, tanto do ponto de vista do Direito quanto da Bioética.

Luciana conversou com o Boa Morte em outubro de 2022.


O que é Testamento Vital?

As Diretivas Antecipadas de Vontade são um conjunto de documentos que possibilita que a pessoa manifeste, previamente, seu desejo em relação aos cuidados de saúde.

O Testamento Vital é uma espécie de diretiva, criado na década de 1960 nos Estados Unidos, na qual qualquer pessoa que tenha capacidade jurídica e discernimento documenta seus desejos sobre o que quer ou não, e garante ao indivíduo o direito de se autodeterminar sobre cuidados de saúde no futuro, especificamente no que se refere ao fim da vida. 

É importante fazer o Testamento Vital para evitar que decisões de fim de vida fiquem a cargo de familiares e/ou de profissionais de saúde.

Costumo dizer que o testamento vital é a nossa voz para quando nós não tivermos mais voz.

Qual o valor jurídico do Testamento Vital hoje no Brasil?

Há um projeto de lei para regulamentar o Testamento Vital que está parado no Senado desde 2018. O autor do projeto, o senador Lasier Martins, encerra seu mandato em dezembro de 2022. [Lasier se candidatou à Câmara dos Deputados, mas não se elegeu.] O projeto ficou muito tempo sem relator, pois há uma dificuldade em encontrar políticos que aceitem relatar questões como essa. Recentemente, a senadora Mara Gabrilli aceitou a relatoria. Uma audiência pública sobre o tema já foi aprovada, mas ainda está sem data definida. Espero que agora o projeto avance.

Há também uma resolução do Conselho Federal de Medicina, de 2012, favorável ao Testamento Vital, que foi contestada por um procurador de justiça e teve sua constitucionalidade assegurada no Poder Judiciário.

Apesar dessa resolução afirmar textualmente que o desejo do paciente prevalece sobre o desejo dos familiares, na prática, hoje, o cumprimento do testamento vital está intrinsecamente ligado à vontade dos familiares. Se a família do paciente decide cumprir o desejo que ele expressou no Testamento Vital, os médicos acompanham. Mas se a família decide descumprir a vontade do paciente, o médico também acompanha a decisão da família, com medo de ser processado.

Ou seja: é preciso legislar sobre o Testamento Vital em definitivo no país para que ninguém possa interferir no direito à autodeterminação do paciente expresso nesse documento.


Você já esteve na Suíça, pesquisando sobre a morte assistida naquele país. Como funcionam as principais organizações que oferecem o procedimento por lá?

Em 2019 acompanhei, na Pegasos, a morte assistida de um australiano que sofria de Mal de Parkinson. Na Suíça a morte voluntária assistida administrada por terceiros (a chamada “eutanásia”) não é permitida; o país só permite a morte voluntára assistida autoadministrada, quando o próprio paciente ministra a substância letal, por via oral ou intravenosa (o chamado “suicídio assistido”).

A organização suíça mais antiga e conhecida é a Dignitas. Por sua visibilidade e tempo de atuação, a Dignitas é também a organização mais antagonizada por quem é contra a morte assistida. No entanto, a Dignitas é a mais conservadora das organizações suíças. A Dignitas só aceita pacientes com doenças graves, incuráveis e irreversíveis, que tenham comprovadamente pouco tempo de vida adiante.

A Lifecircle surgiu quando a médica Erika Preisig entendeu que os critérios da Dignitas eram muito restritivos. A Lifecircle presta mais atenção ao sofrimento da pessoa. O candidato tem que ser portador de doença grave, incurável e irreversível, mas não precisa estar em estado terminal. A Lifecircle admite pacientes com condições incapacitantes que tornem a vida insuportável, ainda que não estejam à beira da morte. Dois médicos precisam aprovar o indivíduo para o procedimento, levando em consideração sua clareza mental, sua firmeza de sua convicção e sua condição de se autoadministrar a dose letal.


Dá para dizer que a Lifercicle atua mais ou menos na linha de Jack Kevorkian, médico americano que considerava que a morte assistida é um assunto médico, parte indissociável do compromisso dos profissionais de medicina em aliviar o sofrimento de seus pacientes…

Sim, a Lifecircle acredita que é preciso haver médicos atuando como gatekeepers nesse processo, decidindo quem pode ou não ter acesso ao procedimento. Já a Pegasos surge de uma visão crítica de Ruedi Habegger, irmão de Erika Preisig, à medicalização da morte assistida. Ruedi considera que todo indivíduo adulto e lúcido tem o direito de decidir quando e como quer morrer. E que esse indivíudo não precisa de um médico para exercer esse direito. A Pegasos, portanto, é a mais liberal das organizações suíças que atendem estrangeiros. O candidato não precisa ser portador de doença grave, incurável ou irreversível, muito menos ter uma doença terminal. Na Pegasos, vale a decisão autônoma e bem refletida da pessoa, o direito de cada um à escolha do que fazer consigo.


Essa visão de desmedicalizar a morte, de levar em consideração o desejo do paciente, acima da opinião do médico, parece estar em linha com a posição de Philip Nitzsche, da Exit International…

Sim. Tanto para Pegasos quanto para a Exit International o suicídio racional é um direito humano fundamental. O livro de Philip Nitzsche, The Peaceful Pill, inclusive, está para ser traduzido para o português.


Derek Humphry, pioneiro do movimento pelo direito à morte digna nos Estados Unidos, também está nesse grupo…

Sim, também. Derek foi um dos precursores na defesa da morte assistida desmedicalizada.


Há um crescente movimento no mundo em torno da defesa da chamada completed life. Que conceito é esse?

A ideia de completed life entende que o envelhecimento causa a completude da vida. E que, a partir de determinada idade, uma pessoa pode simplesmente cansar de viver. Neste contexto, a completed life aparece como mais uma situação que se poderia – ou deveria – permitir o acesso à morte assistida.

Um caso típico é o do cientista australiano David Goodall, que não estava doente. Ele tinha 104 anos e não queria mais viver. Ele procurou as organizações suíças e conseguiu ter uma morte assistida na LifeCircle porque esta organização interpretou as normas suíças – que permitem o acesso para pessoas com condições incuráveis – e entendeu que a velhice é uma condição incurável.

 Na Holanda, há um projeto de lei que propõe que qualquer pessoa com mais de 75 anos possa ter acesso a uma dose letal de medicamento para utilizar em casa, quando e se ela decidir que chegou a hora de partir, sem a necessidade de prescrição ou de acompanhamento médico.

As discussões sobre completed life são um novo desafio dentro do tema morte assistida.


Como está a discussão da morte assistida no Brasil?

No Brasil, a morte assistida, seja ela autoadministrada ou administrada por terceiros, é proibida. A discussão a respeito do direito dos indivíduos à autodeterminação ainda está muito incipiente por aqui.

A morte é um tabu enorme entre nós. A autodeterminação no fim de vida, ainda mais. Ninguém quer falar disso. Temos um apego muito grande à vida biológica. E damos um peso muito menor à vida biográfica. Esses conceitos são aprofundados pelo bioeticista espanhol José Ortega y Gasset.

“Vida biológica” é ter seu coração batendo, é a existência de funções vitais em seu corpo. “Vida biográfica” é sua capacidade de tomar decisões, de se comunicar, de estar consciente e de agir como um indivíduo autônomo.

No Brasil, a ortotanásia representa o começo de uma conversa sobre o tema.

Há uma resolução do CFM, de 2006, que permite ao médico limitar ou suspender o suporte artificial à vida em pacientes terminais.

Quando o CFM publicou essa resolução, ele foi massacrado.

Foi aí que se difundiu no país o termo “ortotanásia”. Para distingui-lo do procedimento da “eutanásia”, que é o ato de encerrar a vida do paciente a seu pedido.

O termo ortotanásia surgiu na Espanha. Mas foi no Brasil que ele se popularizou.

Os bioeticistas americanos passaram a admirar essa distinção no léxico, porque nos Estados Unidos o termo dominante para a morte voluntária assistida administrada por terceiros é eutanásia, o que atrai muito preconceito.

Ainda estamos longe de conseguirmos discutir morte assistida de uma maneira séria no Brasil.

Recentemente, tem crescido a compreensão de que a suspensão da manutenção da vida em pacientes vegetativos não pode ser considerada “eutanásia” porque, para esses pacientes, a prolongação da vida, em uma situação irreversível, significaria, na verdade, distanásia, a chamada “obstinação terapêutica”, uma prolongação inútil do sofrimento da pessoa.

Essa percepção é o que sustenta, por exemplo, aquele parecer do CFM.


Como funciona a morte assistida em outros países?

Na Colômbia, a morte voluntária assistida administrada por terceiros é permitida desde 1997. E, desde outubro de 2022, a morte voluntária assistida autoadministrada também foi descriminalizada. É o país mais avançado da América Latina no tema da autodeterminação.

Na Nova Zelândia, ambos os procedimentos são permitidos. Assim como na Holanda, na Bélgica, em Luxemburgo e no Canadá.

Na Espanha também, desde 2021, os dois procedimentos são legais. O mesmo acontece na Austrália.

Nos Estados Unidos, em dez estados, tanto quanto na Suíça, o a morte voluntária assistida autoadministrada, e a morte voluntária assistida administrada por terceiros é ilegal.

Cada país define suas regras. Elas não são as mesmas em todo lugar. Uma das grandes questões, por exemplo, é definir o que é “terminalidade”.

Quando a vida termina? Se você elege o critério de incapacitação permanente, você está levando em consideração a vida biográfica. Quando você olha apenas para a permanência das funções vitais, você está considerando só a vida biológica.

Uma linha de pensamento convida a pensar a vida como uma experiência que precisa vir acompanhada de qualidade e dignidade – a vida biográfica. Outra, é olhar apenas para a continuação da respiração e dos batimentos cardíacos – a vida biológica.


Como essas nuanças na discussão sobre o direito do indivíduo à autodeterminação se dão em outros países?

A discussão da terminalidade, de modo geral, ainda está muito associada ao tempo de vida restante. E não à qualidade ou à dignidade deste tempo de vida. Mas isso já começou a mudar.

A recente decisão judicial que descriminalizou a morte voluntária assistida autoadministrada na Colômbia tem esse viés. Mesmo que você não venha a morrer em seis meses, se sua existência lhe impuser um sofrimento que você julgar insuportável, você pode ser considerado para o procedimento.

Considerar que a incurabilidade e a irreversibilidade da condição do paciente, independente do tempo de vida que ele tiver pela frente, é um critério válido para estabelecer a terminalidade, tornando-o assim elegível ao procedimento, é tese que se tornou mundialmente conhecida com o caso do espanhol Ramon Sanpedro, relatado no livro Cartas do Inferno, que deu origem ao filme Mar Adentro.

A legislação na Holanda, na Bélgica, em Luxemburgo e no Canadá também dá mais ênfase ao sofrimento do paciente do que ao tempo de vida que lhe resta.

A Suíça também é assim, pois a norma fala em “condição incurável”. Contudo, alguns procedimentos em pacientes sem uma patologia definida, tem aparecido por lá. Para dificultar isso, em maio de 2022, a associação médica suíça reforçou a necessidade do diagnóstico médico de uma doença grave e incurável, não apenas a incurabilidade de uma condição ou a insuportabilidade de um sofrimento não-associado à uma doença sem cura, segundo o CID, o catálogo internacional de doenças.

Agora, a permissão da morte assistida para pessoas jovens e saudáveis que simplesmente queiram deixar de viver é algo que não está amparado hoje pela legislação em nenhum país.


Que outras zonas cinzentas existem nessa discussão em torno da autonomia do indivíduo no fim da vida?

Talvez a principal zona cinzenta nessa discussão seja a “ladeira escorregadia” – em inglês, slippery slope. Ou seja: o receio de que descriminalizar a morte assistida para doenças terminais possa criar espaço para que as regras estabelecidas sejam desrespeitadas e abusos ocorram. Penso que definir qual é o critério aceitável para o acesso à morte assistida é também uma zona cinzenta.

Outro foco de discussão é o “turismo de direitos”, quando pessoas viajam para realizar o procedimento que é proibido no lugar onde moram. Hoje a Suíça é o único país em que pessoas de outras nacionalidades, residentes em outros países, são acolhidas. Nos Estados Unidos, essa é uma discussão quente, uma vez que 80% dos estados americanos ainda não permitem a morte assistida.

Um outro terreno que demanda muita discussão é dos pacientes com doença mental. Estamos falando de doenças psiquiátricas. Pacientes com depressão, por exemplo, passam por períodos em que sua autonomia para decidir pode ficar comprometida. Como lidar com esse tipo de situação? Como estabelecer limites para a incapacidade decisória que resguardem o paciente de uma escolha equivocada e irreversível, mas que também não solapem o seu direito à autodeterminação?

Da mesma forma, é muita complexa a questão quando ela envolve crianças e adolescentes. De um lado, pessoas nesse idade não têm a correta compreensão e a maturidade para tomar esse tipo de decisão. De outro lado, precisamos reconhecer que crianças e adolescentes também podem sofrer dores incuráveis, insuportáveis e intratáveis.

O que fazer? Submeter o paciente a anos de sofrimento até que ele possa decidir por si? Permitir que um terceiro possa tomar essa decisão pela criança, ainda que seja seu pai ou sua mãe? Isso fere o princípio da autodeterminação, que estabelece que o indivíduo, e só ele, pode decidir sobre si mesmo.

Não há resposta fácil nesses casos limítrofes.

A capacidade decisória também pode afetar pacientes com doenças neurodegenerativas. A maioria das legislações que permite a morte voluntária assistida autoadministrada, e não a versão administrada por terceiros, exige que o paciente tenha capacidade decisória – e expresse seu desejo de forma clara e firme – no dia do procedimento.

Pacientes com Alzheimer, por exemplo, em determinado momento deixam de poder manifestar sua escolha, mesmo que eles o tenham feito ao longo da vida e tenham deixado isso muito bem determinado em seu Testamento Vital. Muitos desses pacientes também deixam de poder administrar a dose letal de forma consciente, por já não estarem plenamente conscientes.

Por fim, pacientes que, mesmo estando perfeitamente lúcidos e cônscios de si mesmos, como aqueles que sofrem de esclerose lateral amiotrófica (ELA) em estágio avançado ou de síndrome do encarceramento, em estágio avançado, podem ter dificuldades físicas para se autoadministrar a dose letal. Por conta disso, eles também se tornariam, a partir de determinado estágio da doença, inaptos para o procedimento de morte voluntária assistida autoadministrada. Eles precisariam recorrer ao auxílio de outra pessoa, o que não é permitido em vários países.

Como você vê o futuro legislativo da morte assistida no Brasil?

Penso que, se as coisas continuarem como estão, demoraremos muito a ter uma lei sobre este tema no país. Ao olhar para as experiências estrangeiras, percebo que a discussão social sobre a morte assistida precede a legalização. E, infelizmente, este não é um tema que faz parte das nossas conversas no Brasil. Seja porque nossa moralidade judaico-cristã nos trava na hora de falarmos sobre a morte, seja porque nunca tivemos um brasileiro que tenha buscado o Poder Judiciário para pleitear esse direito, o fato é que nunca debatemos publicamente um caso concreto.

Ressalto apenas que, na minha opinião, antes de pensarmos em legalizar a morte assistida, precisamos ofertar acesso universal aos cuidados paliativos, para não corrermos o risco de que a morte assistida seja usada para evitar a mistanásia – como é chamada a morte “miserável”, “infeliz”, que ocorre em decorrência da precariedade dos serviços públicos de saúde público ou por atendimento médico negligente.




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A morte voluntária assistida, tanto na versão autoadministrada quanto na versão administrada por terceiros, constitui um procedimento ilegal hoje no Brasil.

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